As memórias mentem

Nossa memória mente. Aquilo que lembramos só tem frações de verdade… Memórias passadas são, em parte, fantasias criadas pelo nosso cérebro.

Não, não estou falando que você não lembra das coisas; estou falando que nós – eu e você, todos nós – não lembramos da realidade vivida.

Em nossa memória, o passado ganha novas cenas, perde outras e se arranja de maneira criativa. E o que é mais interessante: as memórias se reconfiguram ao longo do tempo. Noutras palavras, cada vez que retornamos às memórias, novas imagens surgem e aquilo que lembramos fica ainda mais distante da realidade que foi vivida.

Ao longo das últimas décadas, os pesquisadores do cérebro descobriram algo que pode nos ajudar muito: não faz sentido você brigar para dizer que você tem razão naquilo que você acha que lembra.

Sabe aquela confusão que aconteceu na ceia de Natal envolvendo o seu cunhado anos atrás? Então… A confusão provavelmente aconteceu. Mas ela não foi como você lembra.

Nosso cérebro não é uma câmera fotográfica que registra tudo de forma exata. Ele é mais parecido com um artista, que constantemente pinta e repinta o mesmo quadro com variações e novas nuances. Inclusive com a capacidade de exagerar um “bocadinho”.

A escritora e neurocientista Tali Sharot diz que “O cérebro não tem capacidade de armazenar todas as informações.” Portanto, o cérebro faz uma seleção, priorizando o que parece mais relevante.

Mas a capacidade do cérebro de recriar as memórias vai além. Elizabeth Loftus, uma das maiores especialistas em memória, demonstrou em seus estudos que é relativamente fácil implantar falsas memórias nas pessoas. Ela fez vários experimentos e sabe o que ela descobriu? É possível fazer as pessoas acreditarem em eventos que nunca aconteceram apenas através de sugestões repetidas. Isso mostra o quão maleável e enganosa nossa memória pode ser.

E isso é especialmente perigoso, segundo a pesquisadora, no campo criminal. Muitas investigações são realizadas com base no relato de testemunhas. Mas mesmo o relato das testemunhas nunca é fiel. E pode ser fictício, sem que haja a intenção da pessoa em mentir.

Um caso curioso, por exemplo, envolve a morte do brasileiro Jean Charles de Azevedo. Confundido como terrorista, ele foi morto por policiais franceses. E as investigações revelaram uma série de erros da polícia e até mesmo de testemunhas. Muita gente relatou ter visto coisas, mas que, depois, as investigações mostraram que nunca aconteceram.

Apesar dessas “mentiras” do cérebro, nossas memórias desempenham um papel crucial em nossa vida cotidiana. Elas nos ajudam a aprender com o passado e a tomar decisões melhores no futuro.

A pesquisadora Tali Sharot destaca que “no que diz respeito às nossas recordações, é importante que tenhamos lembranças vívidas do bom, do mau e do feio — mesmo que elas não sejam réplicas perfeitas dos eventos recordados.” Isso nos permite ajustar nosso comportamento de acordo com experiências passadas, mesmo que essas lembranças sejam imperfeitas.

Para ilustrar: pense na lembrança de um acidente de trânsito. Mesmo que não lembremos todos os detalhes com precisão, a memória do medo e do perigo pode nos tornar motoristas mais cautelosos. Da mesma forma, a lembrança de um sucesso no trabalho pode nos motivar a continuar nos esforçando e buscando novos objetivos.

Pegou a ideia?

Gente, ao reconhecermos que nossas memórias podem nos enganar, ganhamos uma nova perspectiva sobre nossas decisões e atitudes. E acho que a primeira coisa – e a mais importante – é não se achar dono das memórias, dono das lembranças. As memórias mentem. E as suas também contêm mentiras. E está tudo bem.

Entender que nossas memórias são falíveis nos permite nos relacionarmos de maneira mais leve… Também nos leva a sermos mais críticos e reflexivos, compreendendo que, enquanto as memórias são uma ferramenta poderosa para o aprendizado e crescimento, elas não são uma reprodução exata do passado.

E lembre-se: a memória pode mentir, mas essa capacidade de adaptação é o que nos ajuda a enfrentar e superar os desafios da vida.

Vamos continuar usando nossas lembranças para crescer, mas sempre com um pé na realidade, cientes de que nem tudo que lembramos aconteceu exatamente como pensamos.

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